Também a propósito dos 100 anos da revista Orpheu, que se assinalam hoje, deixamos um artigo publicado no jornal Expresso, no último sábado:
Furacão Orpheu.
Fernando Pessoa e a revista que abanou
Portugal
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro foram os grandes
impulsionadores desta revista literária em dois números. Custava 30 centavos
quando um jornal diário valia um. O país ficou virado do avesso quando viu o
primeiro número de Orpheu a 24 de março de 1915. Faz esta terça-feira 100 anos.
Manuela Goucha Soares | 23 de março de 2015
Orpheu é um grupo de
homens nascidos entre o último quinquénio da década de 1880 e o primeiro da
década de 1890 que se espelha nas palavras de Fernando Pessoa: "Pertenço a
uma geração que ainda está por vir, cuja alma não conhece já, realmente, a
sinceridade e os sentimentos sociais".
Orpheu tinha a poesia e a irreverência de Fernando Pessoa,
Almada e Mário de Sá-Carneiro. Dirigida por Luís de Montalvor e pelo brasileiro
Ronaldo de Carvalho, Orpheu nasce do impulso e entusiasmo de Fernando Pessoa e
Mário de Sá Carneiro; o mecenas foi o pai deste poeta precoce e tragicamente
desaparecido, que já não estaria disposto a pagar a impressão do terceiro
número tal fora o estremeção social e o escândalo provocado pelos dois
anteriores.
Nesta revista sem
mulheres surgem, no número 2, poemas de Violante de Cysneiros; o único nome
feminino de Orpheu era afinal um heterónimo do poeta açoriano Armando
Côrtes-Rodrigues .
Orpheu, revista de poetas, pertença estética dos seus
atores, também não tinha jornalistas. Antonio Ferro foi escolhido para editor,
por Sá-Carneiro, por ser menor de idade, o que livraria os membros do grupo
fundador de terem problemas com a Justiça. Mais tarde, distinguiu-se no
jornalismo e marcou como ninguém a estratégia de propaganda de Salazar.
O restaurante Irmãos Unidos, no Rossio, foi quartel-general
da sua redação. "Os orpheistas, como a si próprios se designam",
encontram ali um poiso de "almoços grátis", porque o local é
"explorado" por um "simpático galego que é pai de Alfredo
Guisado" um dos membros do grupo Orpheu, escreve o ex-jornalista Orlando
Raimundo em "António Ferro - O Inventor do Salazarismo".
Orpheu, expressão do movimento modernista, alvor de Portugal
Futurista, é também filho da I República, coevo do anticlericalismo, da Grande
Guerra, do desencanto da República, do intenso nacionalismo patriótico que leva
Pessoa a desejar "melhorar o estado de Portugal".
Canal de todos os movimentos vanguardistas que pululavam por
essa Europa fora, como que adubados pela iconoclastia desconstrutiva do
Manifesto Futurista de Filippo Marinetti [que se inscreve no Partido Nacional
Fascista italiano em 1919], Orpheu é uma pertença estética dos seus atores.
Orpheu é um projeto luso-brasileiro. O grupo
português de Orpheu diz ser de não pertença a toda e qualquer manifestação que
não o prazer da arte pela arte, "a consequência do encontro das letras e
da pintura", afirmando-se movimento dialético de rutura e
desconstrução do passado, pois - ao mesmo tempo que rejeita a evocação
saudosista do passado, arroga-se herdeiro do mesmo para, assim, afirmar um modo
universalista de ser português, na busca de uma nova definição identitária que
passa pelo empenhamento criativo como contributo ativo e decisivo para a antidecadentista
e osmótica "única ponte entre Portugal e a Europa (...)Comprar ORPHEU é,
enfim, ajudar a salvar Portugal da vergonha de não ter tido senão a literatura
portuguesa. ORPHEU é todas as literaturas ".
Três dos seus mais importantes elementos partiram cedo e
abruptamente (Amadeo de Souza-Cardoso, Guilherme de Santa-Rita e Mário Sá
Carneiro), outro retirou-se para as ilhas, outros anunciaram o seu afastamento.
Orpheu suscita imagens/leituras que atravessam o
tempo. "Não é a mesma a figura de Orpheu no seu presente e no nosso. (...)
o verdadeiro rosto de Orpheu não pertence nem aos que o inventaram nem aos que,
fascinada ou distraidamente, experimentaram a necessidade de o complementar.
Pertence à forma mesma do presente sempre outro e sempre futuro, à sua
específica maneira de exorcizar o seu próprio enigma ou de o ignorar
ignorando-se", assim responde Eduardo Lourenço ao inquérito "O
significado histórico do "Orpheu" - 1915/1975", que assinalou os
60 anos da revista.
Orpheu é afirmação, contradição, desconstrução. Orpheu
é criação. Orpheu celebra esta terça-feira 100 anos.
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