segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A inquietante atualidade de Padre António Vieira

Deixamos duas reflexões de Inês Pedrosa sobre a atualidade das ideias e da figura de Padre António Vieira.


1.
Vieira foi um político, no sentido mais nobre do termo, que é o de profeta e pregador (...). Hoje, como no século XVII de Vieira, a palavra «profecia» é alvo de equívocos. Há, de resto, cada vez mais palavras que, à força de serem repetidas pelo que não são, perdem a força do que são. Político é uma delas. Como escritor, intelectual, filósofo, poeta – uma mão cheia de palavras que representam o entalhe da liberdade e do sonho, o trabalho de afinar os circuitos elétricos da alma humana, e que (por isso mesmo?) são cuidadosamente desmembradas até não significarem nada. A ideia, que só por ignorância se pode considerar nova, de que o verdadeiro intelectual é aquele que intervém nos combates da polis, silencia-se facilmente com uma só página de um qualquer sermão de António Vieira – que passou a vida no púlpito e na rua, lutando pelos direitos dos índios e dos escravos do Brasil. O dom de futurar a que se chama profecia resulta da capacidade de olhar para o presente como se ele fosse já passado, ou seja, com o despojamento de uma compaixão humana em estado puro. Todos os grandes escritores, de Camões e Vieira a Dostoievski e Agustina, são naturalmente profetas. Faz-se é muito caso da simplicidade destas palavras, porque somos demasiado contemporâneos para aguentarmos o peso dos intemporais. Mas até isso é velho.     

António Vieira, o padre, lutou pela igualdade e pelo esclarecimento das almas, pela libertação de Portugal face ao domínio espanhol e pela libertação do Brasil tomado pelos holandeses. Foi perseguido pela Inquisição, proibido de falar em público, desprezado e silenciado pelos poderes da sua época. Ousou a humilde vaidade de pensar pela cabeça de Deus, que não regista datas nem raças, e usou a religião como instrumento de religação de cada ser humano consigo mesmo e com os outros. Ainda hoje, 308 anos depois da sua morte, as suas palavras caminham adiante do tempo. De facto, não saímos ainda da Era do Espartilhamento Humano que foi a de Vieira – uma era em que as pessoas inteiras assustam, e só os técnicos especialistas, devidamente arrumados nas suas cátedras específicas, são respeitados. O que motiva as pessoas inteiras – aquelas que sabem que a palavra é uma forma de ação e a ação uma questão de palavra não é mudar de carro, de casa e de mundo, mas, ainda e sempre, mudar o mundo. Ontem como hoje, o mundo resiste à mudança – com maior ou menor folclore sociológico-mediático. Não quereis sujar-vos no suor da política? Não quereis distinguir as características dos peixes nem contribuir para a despoluição dos mares? Meditai pelo menos nesta frase de Vieira: «Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem».
Inês Pedrosa, "A viagem infinita do padre António Vieira", in Expresso, 2005


2.
Se vivesse hoje, como seria esse António Vieira, nascido a 6 de fevereiro de 1608, que bradou contra os desmandos da Terra e do Céu? Escreveria, num computador portátil de viajante eterno, textos assombrosos, como os que escreveu nesse século XVII que lhe coube (...) e excederiam a compreensão dos seus contemporâneos. Escreveria, nos jornais ou na blogosfera, artigos incendiários sobre o estado do mundo - mas precisaria também do púlpito do poder político.
Inês Pedrosa, in Visão, 31-01-2008 (com supressões)

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