Vieira foi um político, no sentido mais nobre do termo, que é
o de profeta e pregador (...). Hoje, como no século XVII de Vieira, a palavra
«profecia» é alvo de equívocos. Há, de resto, cada vez mais palavras que, à
força de serem repetidas pelo que não são, perdem a força do que são. Político
é uma delas. Como escritor, intelectual, filósofo, poeta – uma mão cheia de
palavras que representam o entalhe da liberdade e do sonho, o trabalho de
afinar os circuitos elétricos da alma humana, e que (por isso mesmo?) são
cuidadosamente desmembradas até não significarem nada. A ideia, que só por
ignorância se pode considerar nova, de que o verdadeiro intelectual é aquele
que intervém nos combates da polis, silencia-se facilmente com uma só página de
um qualquer sermão de António Vieira – que passou a vida no púlpito e na rua,
lutando pelos direitos dos índios e dos escravos do Brasil. O dom de futurar a
que se chama profecia resulta da capacidade de olhar para o presente como se
ele fosse já passado, ou seja, com o despojamento de uma compaixão humana em
estado puro. Todos os grandes escritores, de Camões e Vieira a Dostoievski e
Agustina, são naturalmente profetas. Faz-se é muito caso da simplicidade destas
palavras, porque somos demasiado contemporâneos para aguentarmos o peso dos
intemporais. Mas até isso é velho.
António Vieira, o padre, lutou pela igualdade e pelo
esclarecimento das almas, pela libertação de Portugal face ao domínio espanhol
e pela libertação do Brasil tomado pelos holandeses. Foi perseguido pela
Inquisição, proibido de falar em público, desprezado e silenciado pelos poderes
da sua época. Ousou a humilde vaidade de pensar pela cabeça de Deus, que não
regista datas nem raças, e usou a religião como instrumento de religação de
cada ser humano consigo mesmo e com os outros. Ainda hoje, 308 anos depois da
sua morte, as suas palavras caminham adiante do tempo. De facto, não saímos
ainda da Era do Espartilhamento Humano que foi a de Vieira – uma era em que as
pessoas inteiras assustam, e só os técnicos especialistas, devidamente
arrumados nas suas cátedras específicas, são respeitados. O que motiva as
pessoas inteiras – aquelas que sabem que a palavra é uma forma de ação e a ação
uma questão de palavra não é mudar de carro, de casa e de mundo, mas, ainda e
sempre, mudar o mundo. Ontem como hoje, o mundo resiste à mudança – com maior
ou menor folclore sociológico-mediático. Não quereis sujar-vos no suor da
política? Não quereis distinguir as características dos peixes nem contribuir
para a despoluição dos mares? Meditai pelo menos nesta frase de Vieira:
«Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem».
Inês Pedrosa, "A viagem infinita do padre António
Vieira", in Expresso, 2005
2.
Se vivesse hoje, como seria esse António Vieira, nascido a 6
de fevereiro de 1608, que bradou contra os desmandos da Terra e do Céu?
Escreveria, num computador portátil de viajante eterno, textos assombrosos,
como os que escreveu nesse século XVII que lhe coube (...) e excederiam a
compreensão dos seus contemporâneos. Escreveria, nos jornais ou na blogosfera,
artigos incendiários sobre o estado do mundo - mas precisaria também do púlpito
do poder político.
Inês Pedrosa, in Visão, 31-01-2008 (com supressões)
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